terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A “escola” do caciquismo, ou a democracia sitiada

Jornal Público, 15/01/2012

Elísio Estanque
Faculdade de Economia/ Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.


O caciquismo, a troca de favores ou o tráfico de influências não são obviamente fenómenos novos, nem tãopouco são um exclusivo da democracia portuguesa. Uma democracia “com falhas”, que registou recuos em 2011 e que corre riscos de se degradar ainda mais. É verdade que muitos outros fatores, entre eles os grupos de interesse e as organizações secretas, terão tido aí um papel ativo. Mas há um problema de fundo, que é mais vasto, inscrito na sociedade, que remete para os aparelhos partidários e para a história da nossa democracia. Uma parte das gerações mais jovens desinteressou-se da política e dos partidos, outra parte herdou-lhes os piores vícios. É desta última que me ocupo.
Nos últimos 37 anos, as estruturas dos partidos políticos, enquanto trabalhavam e aperfeiçoavam a retórica laudatória dedicada aos seus chefes, foram acenando aos mais jovens com cargos e oportunidades, criando afinidades pessoais e montando a oligarquia necessária para assegurar os seus próprios cargos e interesses. Não foi apenas isto, é certo. Mas foi e é muito isto. O talento e o mérito de cada um têm pouca importância, a não ser quando se conjugam com as fidelidades adequadas, os padrinhos e as tutelas, ou seja, as melhores sedes para a chave do sucesso. E o problema é que este esquema se replica e agrava, quer a juzante, no seio do aparelho de Estado, quando os partidos alcançam o poder (basta lembrar os últimos escândalos a envolver as cumplicidades maçónicas com as secretas ou as nomeações do Governo para os novos órgãos da EDP), quer a montante, na sociedade e no campo associativo, nas estruturas de juventude, onde as “jotas” disputam influência e preparam os respetivos partidos do futuro.
Com isto, os partidos, sobretudo os do arco do poder, criaram uma “escola” para as gerações mais novas, fazendo temer o pior quanto ao futuro da democracia. Repare-se, por exemplo, no associativismo universitário, e atente-se no que se passa na maior associação académica do país, a AAC (Associação Académica de Coimbra), que se orgulha – e bem – de no passado ter sido um viveiro de intelectuais e de ativismo cívico. Hoje, tornou-se um microcosmos que reflete todos os tiques de caciquismo e de perversão dos valores democráticos. As estratégias eleitorais para a Direção Geral (DG-AAC), onde a abstenção é da ordem dos 60 por cento ou mais, a fidelização dos votantes e as vantagens eleitorais definem-se segundo dois critérios essenciais: quem angaria mais apoios financeiros; e quem conseguiu criar uma máquina de cacicagem mais eficiente. Basta olhar as centenas de pelouros e “coordenadores” que os programas exibem em cada eleição, por baixo da respetiva foto, para se perceber o que mais motiva e fideliza os jovens a uma dada candidatura (uma das listas tinha cerca de 800 nomes no seu organigrama).
Os apoios financeiros podem derivar das ligações partidárias do respetivo candidato – já que, embora os partidos e as suas “jotas” jurem que nada têm a ver com o assunto, o certo é que, não raro, os ex-dirigentes assumem, depois, cargos de relevo nas juventudes partidárias – ou da proximidade dos cabeças de lista com os interesses empresariais e as marcas de bebidas que detêm direitos de exploração e comercialização na queima das fitas com base em convenções com a AAC (o mercado da cerveja é enorme e muito lucrativo em Coimbra) e ainda, eventualmente, de algum papá com mais poder económico a velar pelo futuro do filhinho. E as fidelidades eleitorais dependem muito mais da adesão e do ruido das “claques de apoio”, das ligações pessoais e do trabalho dos “caciques” do que das propostas em causa, de resto, a maioria delas inócuas. Esta lógica encontra no ritualismo académico, com os seus ingredientes hierárquicos e despóticos, um terreno particularmente fértil.
O caloiro chega, imaturo e frágil, e vê-se envolvido num mundo novo (não falo aqui das minorias e dos residentes nas “Repúblicas”, que são a exceção). Um mundo de jogos e rituais, onde, deslumbrado com tanto hedonismo e aventura para usufruir, é levado a participar ativamente, pois a sua integração na comunidade passa por aí. Esse momento inaugural é reconhecido como decisivo na estruturação das futuras identidades de grupo do novato. O padrinho, o mais velho, que o inicia e lhe incute o espírito praxista, que fala melhor, que tem influência junto da turma, dos “amigos dos copos” e por vezes junto das “meninas” que o elegem como o seu fã, torna-se uma referência. Perante um público pouco exigente e não politizado (onde o debate e a reflexão são inexistentes), a adesão faz-se mais por razões estéticas do que de conteúdo. Interessa menos o que pensa e propõe o candidato do que a sua imagem e “performance”. Um jovem com este perfil estará com certeza bem posicionado para uma trajetória ascendente no associativismo ou como futuro quadro de um partido político. O Parlamento espera-o. Mas, cuidado. Porque, por este andar, quando chegar a sua hora pode já não haver Parlamento, nem democracia.

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